Uma breve narrativa de alguma história/emoção que foi significativa
- Fer
- 19 de out. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 27 de out. de 2023
Ah. Eu entendi agora.

Minha relação com meu pai sempre foi estranha. Ele é um cara meio estranho. Muito alto, diferente da família de pigmeus que eu tenho por parte de mãe; muito quieto, diferente do lado materno barulhento; muito distante, diferente dos laços emaranhados e calorosos que me criaram.
Ainda assim, eu não consigo lembrar de uma única briga que tivemos durante minha juventude. Nunca tivemos intimidade o suficiente nem para desentendimentos. Era uma cordialidade civilizada, em que as mágoas de seus sumiços eram devidamente compartimentalizadas e eu continuava desempenhando meu papel de filha educada e amável.
Não eram ruins esses encontros esporádicos. Me drenavam um pouco, acho, porque os silêncios eram frequentes e desconfortáveis, então cada neurônio ao meu dispor era usado incansavelmente para ser uma metralhadora de curiosidades e piadinhas. A voz do meu pai é baixa e grave, por vezes incompreensível, então a necessidade de falar ininterruptamente era ainda mais urgente.
Os piores momentos não eram esses monólogos compulsórios, no entanto. Eram os breves clarões que deixavam evidente, incontornável, o elefante na sala que eu estava me esforçando tanto para ignorar. Esses clarões vinham no formato de presentes. As visitas eram tão esporádicas que se acumulavam essas datas comemorativas e, para meu horror, eu me via com dois, três embrulhos em mãos. Uma camisa do Botafogo (tinha horror a futebol). Um livro de uma escritora teen (que eu particularmente odiava). Um kit de maquiagem (até hoje não sei fazer um delineado). Um perfume (intragavelmente doce). Um livrinho de preces (fui a criança mais gentia já vista).
Eram nesses momentos que eu esquecia as falas da minha peça. Só eu sabia da ofensa cometida, da evidência que éramos completos desconhecidos não importa o quanto eu tentasse condensar no meu discurso tudo de mim que ele não via.
E nesse borrão de cortes de papel e decepções cotidianas teve um episódio que finalmente me fez realizar a natureza daquela relação. Não foi exatamente uma surpresa, porque era terrivelmente óbvio, mas o momento que a situação se tornou inegável. Eu tinha 14 anos.
Não o via há uns dois anos: agora que ele morava em outro estado, casado e com dois enteados e uma filha bebê, havia uma desculpa sólida para desaparecer. No entanto, aqui ele estava, com a família nova completa no apartamento da minha vó. E eu continuei no meu modus operandi tirado de um livro de etiqueta. A adolescência tinha me deixado menos tagarela e mais soturna, e eu sempre andava com um livro debaixo do braço para justificar meu silêncio.
Pedi licença e me retirei daquela sala de estar, barulhenta com meus meio-irmãos infestados de piolho correndo de um lado pro outro. Levei meu livro para a suíte de minha avó, com a desculpa de ir lavar o cabelo. Assim que via aquelas crianças eu sentia coceira, não sei se justificada ou só de nervoso mesmo.
Meus banhos sempre foram demorados. Quando estava com aquela família então, se tornavam uma epopeia. Estar sozinha e em silêncio era uma dádiva rara nessas visitas, e por mais que fosse o primeiro dia dos sete que eles passariam no Rio, eu já tinha me esgotado de representar meu papel. Abri o chuveiro quente. Fiquei sentada no vaso olhando os azulejos de gosto questionável, cor de goiaba, cheios de floreios e rosas brancas. O espelho embaçava. Li os rótulos das dúzias de cosméticos caros que ocupam a bancada. Lá fora continua barulhento como sempre, mas pouco importa.
Misturei todos os shampoos, condicionadores e máscaras capilares. Todos os sabonetes, esfoliantes e óleos corporais. O rebuliço da sala parecia só aumentar, mas estava muito ocupada no meu spa pessoal. Fechei o chuveiro, me enrolei nas toalhas felpudas da minha vó e comecei a perceber uma eletricidade incomum no ar.
Não são só os guinchos das crianças e sermões de adultos. Eu ouvia a voz do meu pai. O homem só fala em murmúrios que parecem arrotos reprimidos e eu ouvia ele esbravejando. E a voz da minha avó, estridente, o que também é bizarro. Ela não é uma mulher de barracos, mas de passivo-agressividade e micro agressões. Sento na cama e leio alguns capítulos do meu livro. Devo ter passado umas duas horas trancada naquele quarto antes de finalmente vestir uma roupa e contar as baixas da terra arrasada que era aquela reunião de família.
As crianças estão quietas, todas sentadas no sofá com as bagagens empilhadas em sua frente. A porta da frente está aberta e minha madrasta me encara com uma expressão de pena e cansaço. Diz que meu pai e minha vó brigaram. Diz que eles estão voltando pro Espírito Santo. Diz que meu pai está lá embaixo colocando o bebê conforto de volta no carro alugado. Diz que ela acha tudo maluquice, que ela e as crianças estão cansadas mas ele é resoluto. Diz que sente muito.
A partir daí eu não tenho a mínima ideia do que os adultos falaram para mim. E também não tenho muita consciência da minha reação, faltava esse capítulo no meu livrinho de etiqueta. Só lembro vividamente de descer com as crianças, sentir um beijo do meu pai na bochecha enquanto ele dava partida no carro e ia embora. Passamos umas seis horas juntos depois de dois anos. Sabe Deus quando eu iria vê-lo de novo.
O que me choca é que eu não briguei, não xinguei, não protestei. Não denunciei a completa insanidade que era aquela família. Quando me deitei na rede da varanda e coloquei no fone o metal mais deprimente do meu MP3 player, eu senti frustração, abandono, fúria. E alívio.
Minha semana de tortura acabava de ser cancelada, mas eu também tinha a prova irrefutável da sua completa indiferença. E eu não conseguia ignorar ou compartimentalizar essa mágoa mais.
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